terça-feira, 29 de novembro de 2011

Meninas-jesus

Não sou nada dada ao Natal... Não tanto pela festa religiosa, pois respeito (e até invejo) quem acredita que Deus se fez homem nascido menino em Belém; é um mistério cuja conversão em dogmas (Santíssima Trindade, Encarnação) nem por isso deixou de fazer "suar as estopinhas" a teólogos e filósofos durante séculos, mas a mim não me inspira nem interpela... O que me faz não gostar desta época é o que normalmente se associa quase inerentemente ao Natal: a caridadezinha sazonal e o consumismo histérico. Abomino.

Mas acho que este ano o Natal entrou minha casa adentro sob a forma de duas criaturinhas inocentes e indefesas:


Estas duas meninas-Natal entraram ontem desamparadas (sem mãe, sem nome, etc.) no Canil Municipal de Braga e uma voluntária da ABRA (a extraordinária Lili) pediu-me para as acolher até a ABRA lhes arranjar uma família de acolhimento ou um(a) dono(a).







O seu hálito ainda cheira "a leite", as suas fezes e urina ainda cheiram "a bebé", mas sempre que podem, não deixam de mostrar a sua raça:










Bem-vindas, meninas-jesus!

domingo, 27 de novembro de 2011

Fado e animais: a propósito de patrimónios imateriais

Parabéns ao fado, desde hoje (27/11/2011) reconhecido pela UNESCO como património imaterial da humanidade!

Aprendi a gostar de fado na adolescência e no estrangeiro... Estava em Berlim, a conhecer a cidade e o resto da Alemanha e descobri em casa dos meus amigos anfitriões a discografia completa de Amália Rodrigues ao lado de vultos como Frank Sinatra e Kurt Weill. Os meus amigos alemães explicaram-me o que era o fado e quem era Amália e só quando me obrigaram a ouvir os seus discos vinil (eu sou do século passado!) é que todos os meus preconceitos se começaram a diluir.

Hoje, ouço frequentemente Amália Rodrigues, não só as suas interpretações de fado, como de temas líricos, de cantautor, de jazz ou de Bossa Nova. Talvez por causa do doutoramento, tenho trauteado frequentemente esta brincadeira genial da “Formiga Bossa Nova” (também já interpretado pela Adriana Calcanhoto):

Ver vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=WS-2wcIw5B0

Graças à Amália e aos meus amigos alemães, ouço e deleito-me com todo o tipo de fado e de interpretações: da “Casa da Mariquinhas” (qualquer versão) ao “Homem da Cidade” (do Carlos do Carmo), do Alfredo Marceneiro à Mariza, do Carlos Paredes às baladas de Coimbra, da Beatriz da Conceição ao Camané, da Hermínia Silva à Mísia, e por aí fora.

Estou mesmo muito orgulhosa deste merecido reconhecimento!

E o que é o fado, património imaterial da humanidade, tem a ver com os animais?

É que o lobby da tauromaquia anda a mexer-se para fazer o mesmo com as touradas!!!

A tourada já é património imaterial em países como a França!!! Em Portugal, por exemplo, desde 16 de novembro deste ano que a Capeia Arraiana foi inscrita no inventário Nacional do Património Cultural Imaterial!!!

Ver no Diário da República: http://dre.pt/pdf2sdip/2011/11/220000000/4539045391.pdf


Ora, há uma característica fulcral que distingue um património imaterial como o fado de outro património (?) imaterial (?) como a tourada ou a capeia: o sofrimento, neste caso, dos animais.

Não consigo compreender a esquizofrenia evidente das nossas sociedades civilizadas, que são cada vez menos tolerantes ao sofrimento de todo o tipo e até se dão ao luxo de reconhecer patrimónios imateriais, mas depois valorizam hábitos e tradições bárbaras só porque são “very typical”.

Se o fado exigisse o sofrimento (inocente e indesejado!) dos fadistas daríamos os parabéns com o mesmo orgulho aos organizadores da candidatura à UNESCO?

Mas há outra razão fundamental que afasta as touradas e as capeias do fado: se o fado é hoje (agora de juri uma world music que de facto há muito já o era) é porque se soube reinventar. Amália, por exemplo, atreveu-se a introduzir poetas como Camões (que escândalo na altura!) ou David Mourão-Ferreira no seu repertório, Mariza escolheu Jacques Morelenbaum como produtor de um dos seus álbuns mais bem sucedidos, etc.

É isso que faz com que estas fadistas de gema e ilustres representantes de Portugal (da sua língua, mas também dos estilistas e dos cabeleireiros que cuidam da sua imagem) no mundo já nada tenham a ver com a fadista retratada no famoso quadro de José Malhoa, "O Fado", 1910:



Ora, é isso que não se vê nas touradas e nas capeias: a barbárie mantém-se. O fado limpou os vestígios de pobreza, de crueldade, de ignorância, de estigma (e até do regime salazarento!) que a ele estavam associados e hoje é um embaixador que a todos orgulha, mesmo a quem não gosta deste tipo de música. Já as touradas e as capeias mantêm o pior que as tradições podem ter: a violência ancestral ritualizada...

Talvez a violência fosse mais tolerada (?) nas sociedades do passado, mais pobres, mais duras, menos escolarizadas, mais dependentes dos animais para tudo. Mas hoje? Elevada ao estatuto de património (?) imaterial (?) da humanidade??? Da humanidade? Humanidade? Humanidade ou antropocentrismo? Se calhar é património imaterial do antropocentrismo, ou seja, da visão tradicional (i.e. pré-científica) do homem no centro de tudo e a usar e abusar de todos os seres da terra...


Eis um exemplar do património imaterial do antropocentrismo versão "tuga":