sábado, 21 de janeiro de 2012

Ainda sobre o eventual falhanço da petição contra as Touradas: Cecilia Bartoli e "Sacrificium"

O que é que o eventual falhanço da petição contra as Touradas tem a ver com a cantora lírica Cecilia Bartoli e o seu mais recente cd (já é de 2009) "Sacrificium"?

Tudo. Este cd chama-se Sacrificium porque é uma homenagem a todos os castrati, cantores castrados em meninos (normalmente órfãos e abandonados) para que as suas vozes ficassem como as das cantoras (soprano, mezzo-soprano ou contralto), mas com a potência pulmonar de um homem.

Esta foi uma prática normalíssima até século XIX, a Itália foi o último país a proibir os castrati; depois da Itália, só mesmo o Vaticano, em 1902, por ordem de Leão XIII.

Era uma prática cruel, com efeitos devastadores nos meninos e sobretudo nos homens castrados - aconselho o belíssimo filme Farinelli, justamente sobre o sofrimento de um castrado famoso...




Ora (e já nem falo dos eunucos do Império Bizantino), se nos séculos XVI, XVII, XVIII e até mesmo XIX, mesmo depois da Declaração Universal dos Direitos do HOMEM, alguém ousasse questionar a castração dos meninos invocando o seu sofrimento e o seu direito à integridade corporal... a elite e o povão rir-se-iam certamente e diriam que era em nome de uma arte: a música e o canto...

Hoje, muitos parlamentares (e muito do povão português) riem-se com os direitos dos animais e com o fim das touradas (porque é uma arte, blá, blá, blá)....

Mas, como dizia Jeremy Bentham, "Há-de vir o dia..." em que a tourada nos parecerá tão repugnante como o canto castrato, mesmo que artístico...

Por isso, gosto tanto deste cd.

Primeiro, porque a Cecilia Bartolli está esplendorosa e prova que uma mulher pode fazer o que quiser, se tiver vontade de o fazer. Ela confessou que foram árias muito difíceis de interpretar (precisamente porque foram feitas para pulmões de um homem), mas nós quando a vemos (ela é grande!) e sobretudo quando a ouvimos cantar, não damos por isso...

Depois, porque é um cd em forma de livro, já que além dos 2 cd e do libretto, tem 151 páginas em inglês, francês e alemão, com a história do fenómeno dos castrati - "Evviva il coltellino!", qualquer coisa como "Viva a faca!" - e com um glossário vastíssimo sobre tudo e todos os que tiveram a ver com este fenómeno. Para não falar das belas fotos e pinturas...

Finalmente, MAS NÃO EM ÚLTIMO, porque quando o ouço, sinto que houve progresso civilizacional (o que quer que isso seja...), pelo menos porque já não nos podemos dar ao luxo de ouvir "Ombra mai fu" (não houve sombra) do Handel à custa do sangue e do desespero de uma pessoa! Ouvimos de outra maneira, que mesmo se inferior ponto de vista estético (não é o caso), é muito superior do ponto de vista moral.

Há-de vir o dia em que pensaremos, sobretudo PRATICAREMOS, do mesmo modo com os animais não humanos... É engraçado, eu que sou uma pessimista a roçar o trágico, o niilista e o relativista... acredito que esse dia virá... Com passos pequeninos como petições, iniciativas de cidadãos e outros!

Para quem quiser ouvir trechos e a entrevista com a Cecilia Bartoli:

2 comentários:

  1. O progresso não é simples nem linear... Antes fosse.

    ResponderEliminar
  2. O progresso não é uma linha cumulativa, não...
    Parece-me que é mais uma espécie de pastilha elástica: tanto pode esticar-se e fazer criações extraordinárias (balões, sub-balões, etc.), como retroceder e enrodilhar-se toda até ficar irreconhecível...

    ResponderEliminar